16 de dez. de 2013

O RISO E O CHORO PELOS MENSALEIROS

O RISO E O CHORO PELOS MENSALEIROS
Estamos assistindo a um apaixonado debate sobre a prisão dos mensaleiros. Os que condenam as prisões alegam tratar-se de presos políticos e que há vários corruptos, de outros partidos impunes e, por isso, a pena é injusta. Os que se regozijam, afirmam que são ladrões, que têm que pagar pelos crimes.
Não quero cair nesse maniqueísmo, em questão tão profunda. Deve-se examinar como o PT chegou a essa situação. É preciso uma análise fria, calcada em fatos.  Não criar bode expiatório, nem cair em ufanismo.

Devo declarar que convivi estreitamente com o PT quando eu era dirigente da CUT. Conheci as entranhas desse Partido, cuja atuação no governo venho combatendo com convicção. Mas, nessa hora, não se pode jogar água no moinho da direita e, por isso, não me alinho aos que se regozijam com as prisões. Como acho sem fundamento a choradeira. Parece desespero. E é.

Não me alegra a situação dos presos, não só devido ao imenso prejuízo para as esquerdas, mas também porque a degradação de quem quer que seja não é motivo de regozijo. Mas não me alinho aos chorões porque sei que a denúncia do Sr. Roberto Jeferson tem fundamento, como reconheceu o então Presidente beneficiário, Lula, ao pedir desculpas ao povo, em cadeia nacional de televisão. Essa confissão é grande nutriente para a tese “Domínio dos Fatos”. E mais: José Dirceu, devido à comprovação de sua participação, teve o mandato de Deputado cassado pela Câmara dos Deputados, apesar de o governo dispor de maioria na Casa.  E a expulsão do Delúbio do partido.As ressalvas anos depois apresentadas, não anulam o significado desses fatos.

É óbvio que a grande mídia tira proveito, ao tempo em que esconde os escândalos dos grupos que lhe são afins, mesmo havendo provas contundentes. Porém, se os escândalos são maiores ou menores, não importa. Roubo é roubo. E gatuno tem que ser punido. É preciso denunciar os ladrões de outros partidos. E não esquecer o caso Celso Daniel.
Não se justifica, porém, a forma autoritária das prisões. É violência colocar em cárcere fechado quem foi condenado em regime semiaberto. E o prisioneiro doente deveria ter tratamento adequado. Tratamento que deve ser também para o outro doente, o Roberto Jeferson.

Mas não é válido o argumento de que há vários corruptos em liberdade e, por isso, os do PT não podem ser presos. Temos é que exigir julgamento para os gatunos do PSDB, do PDT, do PR, do PMDB etc. Não é porque os pastores de igrejas mercantilistas escorcham impunemente o povo, que os políticos também podem fazê-lo. A existência de governos corruptos não justifica que outro também o seja. O grande escândalo na prefeitura paulista, a compra de votos para prorrogar o mandato de FHC etc. não autorizam nem justificam a  desonestidade de outros. Atos ilícitos, de qualquer um, devem ser punidos.

Para mim, é mais importante examinar se a atual situação do PT é fruto do trabalho da direita ou se é por causa dos erros do próprio partido.
É cristalino que houve uma metamorfose ideológica no partido. Um dos pecados capitais do PT é não abrir a caixa preta de FHC. Quantas patifarias viram à tona. Mas, quem tem telhado de vidro... Não fez a prometida auditoria da privatização da Vale do Rio Doce. Muito menos a da escandalosa dívida pública. E governa igualzinho ao PSDB-DEM-PPS, com indecentes coalizões. Lula acovardou-se ao não levar adiante o projeto de regulamentação das mídias, do ex-ministro Franklin Martins. E quanto ao que seria “Comissão da Verdade e da Justiça”, exigida em mais de cem fóruns e seminários em todo o país, aceitou as pressões da direita e retirou o “da Justiça”.
São trágicas as semelhanças dos governos petistas com os dos tucanos: submissão total ao sistema financeiro, às empreiteiras e ao agronegócio. Em meu blog (ronaldbarata.blogspot.com), cito muitos exemplos.

Que dizer das privatizações dos aeroportos e rodovias! E das transferências de nossos recursos naturais, como o preciosíssimo nióbio? E o enfraquecimento da Petrobras, de Itaipu e da Chesf.  E a entrega à iniciativa privada do maior campo petrolífero do mundo, o de Libra, além dos que já entregou do pós sal.

Ademais, conforme declarou Lula, nunca os banqueiros ganharam tanto dinheiro como no governo dele. Se o sistema financeiro e todo o grande capital  está contemplado, plenamente satisfeito, por que haveria um golpe? O papel carbono atende perfeitamente, tanto quanto o original. A política econômica tem como pilares o câmbio flutuante, as metas de inflação e o superávit primário, receita do FMI implantada por FHC e continuada por Lula e Dilma.

Os governos petistas poderiam ter aprofundado a democracia; fortalecido os movimentos sociais, principalmente o sindical; democratizado os meios de comunicação. Preferiram silenciar pela cooptação, conjugada com a aliança com o capital, e ceder migalhas aos pobres. É, literalmente, a receita norte-americana que Lula aprendeu quando fez curso no IADESIL, escola de sindicalismo da CIOLS, criada pela AFL-CIO (braço sindical da CIA). A CUT está filiada à CIOLS- Central Internacional das Organizações Sindicais Livres.
O BNDES recebeu do Tesouro, em quatro anos, cerca de R$ 400 bilhões, que emprestou a empreiteiras, bancos e agronegócio a 5,5 e 6% e que o Tesouro captara a juros de 15%,17%, 13%; E mais o que entregou aos eikes batistas.

Rotular como presos políticos é bazófia. O partido no poder é o dos apenados. O Tribunal que os condenou tem folgada maioria de juízes indicados pelos presidentes petistas. No Congresso Nacional, o governo goza de larga maioria. As Forças Armadas, felizmente, estão recolhidas. Repito: Mais que qualquer discurso dos juízes, para mim, vale a confissão de Lula em rede nacional de TV e a cassação de José Dirceu.
           
Encerro com uma declaração do petista que participou da elaboração do plano estratégico do primeiro governo Lula e ex diretor da Petrobras, Ildo Sauer, corroborada pelo ex diretor do BNDES no governo Lula, Carlos Lessa: O patrimônio público está sendo entregue aos grupos econômicos, sem contrapartida e compromisso... Infelizmente, não temos um governo com visão estratégica, e nem projeto de país, a fim de buscar uma base de ampliação dos benefícios sociais, a criação de autonomia, o fim das assimetrias”.
         Em 20 de novembro de  2013                 RONALD SANTOS BARATA




14 de nov. de 2013

Transporte Público Urbano e Protesto Social no Brasil Contemporâneo

O conjunto de manifestações populares que vem sacudindo diferentes cidades brasileiras desde meado deste ano, a não ser por sua abrangência nacional e sua simultaneidade, não constitui um fato novo na história social de nosso país. Há mais de um século, mobilizações e atos de protesto têm expressado o descontentamento de largos setores das classes e camadas subalternas de nossa sociedade em relação às condições desfavoráveis de existência que caracterizam sua presença nos centros urbanos, com especial ênfase na questão do transporte. Acontecimentos como a Revolta do Vintém de 1879/1880 no Rio de Janeiro, o Quebra-Bondes soteropolitano de 1930, o Quebra-quebra dos ônibus de Salvador em 1981 e as passeatas contra os aumentos das tarifas de ônibus, em várias capitais brasileiras, incluindo Salvador em 2013, integram o longo repertório de lutas das populações urbanas contra o estado de mal estar vigente em nossa sociedade.

A Revolta do Vintém – Rio de Janeiro, Dezembro de 1879 - Janeiro de 1880.
São interessantes os paralelismos existentes entre esta pioneira mobilização das massas populares contra o reajuste das tarifas dos transportes urbanos e as manifestações protagonizadas pelo Movimento Passe Livre (MPL) e outras organizações nos dias atuais. Em 13 de dezembro de 1879, o ministro da Fazenda, em nome do governo imperial brasileiro, anunciava a criação de um imposto no montante de vinte réis (um vintém), que seria adicionado ao preço das passagens dos bondes a partir do dia primeiro de janeiro do ano seguinte. Este tributo visava reforçar os cofres da coroa, acometidos por um déficit incômodo. Porém, a flagrante situação de miserabilidade vivida por amplos setores das classes populares da capital do império fez com que a medida fosse recebida com desagrado não apenas pelos principais interessados, mas, também, pelos círculos políticos da oposição republicana, assim como por uma boa parcela da imprensa carioca. Intuindo as consequências perigosas das reações populares, a própriaBotanical Garden Bond & Share, isto representaria o pagamento antecipado de receita futura. Prevaleceu a determinação do governo, confirmada pelo parlamento imperial, de efetuar a cobrança diretamente dos usuários.
Os órgãos de imprensa mais sensíveis às necessidades populares, críticos desta iniciativa, argumentavam que o tal imposto tinha uma incidência desigual e indiscriminada. Diferentemente dos demais impostos existentes, que recaíam sobre rendas, lucros e salários proporcionais aos ganhos, o novo imposto não diferenciava, ricos e pobres, moradores dos bairros residenciais da zona sul da cidade (como Botafogo, Jardim Botânico e Cosme Velho) do operariado mal remunerado dos arredores do centro, como Cidade Nova e Catumbi. Já a imprensa mais conservadora, receosa das reações populares, difundia seus apelos à ordem. Lembrava que o governo havia tolerado sempre a manifestação de “representações respeitosas” e, finalmente, pedia para que os descontentes, ao invés de protestar, direcionassem sua energia para a eleição de bons políticos que se ocupassem em defender os verdadeiros interesses da maioria da população.”[1]
Às vésperas da vigência do imposto, uma grande manifestação popular teve lugar no Campo de São Cristovão, tendo como principal orador o tribuno republicano Lopes Trovão. Em tom razoavelmente moderado e conciliador, Trovão convidou os populares a apresentarem uma petição ao imperador solicitando a revogação do imposto. Porém, já no caminho entre o local do comício e o Palácio Imperial, os manifestantes foram confrontados por um efetivo de segurança que incluía uma linha de cavalaria e mais de cem agentes armados com grossos e compridos cassetetes conhecidos como “bengalas de Petrópolis”. Intimados a recuar pelo segundo delegado de polícia da corte, a multidão, mais uma vez sob a voz de comando de Lopes Trovão, que reafirmava o caráter pacífico da manifestação, resolveu enfrentar as ameaças e intimidações da polícia e prosseguir sua marcha rumo ao Paço de São Cristovão, na expectativa de serem recebidos pelo imperador. Ao atingirem o portão de entrada do palácio, perceberam que este se encontrava fechado e protegido por um pelotão de cavalaria. Frustrados e indignados, muitos manifestantes já haviam dispersado quando chegou uma mensagem do imperador se dispondo a receber uma comissão constituída por representantes do povo. Constatando o esvaziamento do movimento, a liderança da manifestação, que incluía, além de Lopes Trovão, José do Patrocínio, optou por declinar do convite.
A esta altura, de acordo com Ronaldo de Jesus,

Demonstrando certo desconforto – mas fazendo a apologia da ordem estabelecida, da conduta da polícia e da atitude do monarca –, a grande imprensa insistia em afirmar que o único incidente grave ocorrido em 28 de dezembro teria sido a recusa da comissão de “representantes do povo” em aceitar o chamado, ainda que vacilante, de D. Pedro II. Contudo, a calma aparente seria abalada poucos dias depois com a chegada do “ano novo” e do novo imposto. O movimento de protesto passaria a incluir outros segmentos da população carioca menos “ordeiros”, e a “civilidade” no episódio da tentativa de entrega da petição ao imperador ficaria definitivamente para trás[2].

No dia 1º de janeiro, conforme programado, começou a vigorar o novo preço das passagens. Por volta do meio-dia, diante do chafariz do Largo do Paço (atual Praça 15 de Novembro), um outro comício foi realizado e mais uma vez contando com a participação de Lopes Trovão, que incitou a população a resistir de maneira pacífica e ordeira a cobrança do imposto. A aglomeração, entretanto, espalhando-se pelas principais ruas do centro da cidade e bairros adjacentes (Vila Izabel , São Cristovão, São Francisco Xavier), partiu para a depredação dos bondes e enfrentamento com a forças policiais. Em manifestações de fúria espontânea, populares espancavam os condutores, esfaqueavam os animais de tração, arrancavam os trilhos e, com paralelepípedos e bondes atravessados nas ruas, formavam barricadas. A policia reprimia as ações de protesto com disparos de armas de fogo. Ao cabo do primeiro dia, já se contabilizavam três cadáveres de manifestantes (um polonês, um francês e um pernambucano), além de vários feridos à bala.
No dia seguinte, diante da gravidade dos incidentes, políticos e publicistas, tanto conservadores quanto liberais, começaram a rever suas posições, passando a advogar crescentemente a busca de um acordo que conduzisse à suspensão da cobrança do imposto. Apenas o governo, através do conselheiro Paranaguá, procurava exibir certa inflexibilidade, argumentando que a criação do imposto fora o resultado de uma lei, e como tal deveria ser cumprida até que fosse revogada pelo Legislativo. Deblaterando contra as “manifestações sediciosas”, asseverava que Sua Majestade Imperial jamais se curvaria ante as imposições das massas. Ao comentar as mortes dos manifestantes no primeiro dia e consentir com a devolução dos cadáveres para sepultamento (circularam boatos de que o governo, para impedir novos atos de protesto, tentara enterrá-los secretamente à noite), externava também elementos seminais de sua concepção de mundo, ao afirmar:

[...] pelo que diz respeito ao enterramento das vítimas do dia, consentiria que o fizessem e que as levassem à sepultura, mas observava entretanto que não se fizessem manifestações iguais a que em caso idêntico se fizera em França e fora o princípio da revolução[3]

Em face da explosão da rebeldia popular e do elevado ônus gerado pela truculenta repressão, as vozes que defendiam o cancelamento da cobrança do imposto multiplicaram-se mesmo entre os círculos conservadores na imprensa e na política, resultando na revogação do reajuste por parte das autoridades imperiais. Não obstante, os atos de insubordinação protagonizados pelas massas urbanas da capital imperial, compostas predominantemente por escravos, ex-escravos e trabalhadores pobres, sinalizaram o avanço de um processo de desgaste do governo monárquico, podendo ser caracterizados como uma expressão do declínio histórico de um sistema político que conheceria sua débâcle definitiva em menos de dez anos.

O Quebra Bondes de Salvador – 4 de Outubro de 1930
A derrubada do governo da chamada República Velha por uma coalizão formada por tenentes e políticos dissidentes, a instabilidade política e o desconcerto dos círculos dirigentes da sociedade baiana daí decorrentes propiciaram o pano de fundo histórico para o Quebra Bondes soteropolitano de 1930. Indignadas com a elevação recente dos preços das passagens dos bondes, das tarifas de energia elétrica e dos teleféricos que ligavam a cidade baixa à cidade alta, autorizadas pelo prefeito da cidade de Salvador, as classes subalternas da capital baiana protagonizam uma manifestação de protesto popular. Na ocasião, todos os serviços antes mencionados eram monopolizados pelas companhias Linha Circular e Energia Elétrica da Bahia, subsidiárias da Eletric Bond and Share e contra elas se voltou o ímpeto da fúria popular. Como assinala Consuelo Novais Sampaio[4], em poucas horas 84 bondes foram queimados (mais de 2/3 da frota), oficinas, garagens, terminais e depósitos do grupo espalhados pela cidade de Salvador foram depredados, gerando um prejuízo estimado em mais de um milhão de dólares. A exemplo do levante carioca, também aqui um grande jornal desempenhou papel de ator, a multidão arremeteu contra o prédio recentemente construído do jornal A Tarde e inutilizou parte da maquinaria que acabara de ser importada.
A insurreição popular não poupou os representantes do poder político local. O prefeito da cidade Francisco de Souza e o Delegado de Polícia, Pedro Gordilho, foram caçados pelos manifestantes. No curso da perseguição, a multidão cercou o prédio da Secretaria de Polícia e terminou sendo dispersada à bala pela força policial com um resultado de quatro mortos.
Repercutindo, com algum atraso, o colapso do sistema de poder da “república oligárquica”, o Quebra Bondes de 1930 foi também um episódio constitutivo de uma longa série de mobilizações das classes populares de Salvador contra a degradação de suas condições de existência decorrente da violenta espoliação por parte das classes proprietárias com a anuência e o concurso das autoridades governamentais.

O quebra-quebra de ônibus e bondes na cidade de São Paulo em agosto de 1947
Foi em um contexto histórico-político substancialmente distinto que se verificou o quebra-quebra de ônibus e bondes da capital paulista no ano de 1947. O país vivia um período de “intervalo democrático” — como bem o caracterizou a socióloga baiana Petilda Serva Vasquez[5] — com a reconquista das liberdades políticas interditadas durante a vigência do Estado Novo (1937-1945) e a retomada da organização e mobilização das massas populares. Também aqui o acontecimento que deflagrou a manifestação da insatisfação popular foi o mesmo, a elevação da tarifa das passagens de ônibus e bondes, porém as circunstâncias em que isto se deu variaram um pouco. No mês de julho de 1947, todo o serviço de transporte público urbano na cidade de São Paulo fora encampado pela recém-criada Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC). Tal encampação fora motivada pela sistemática deterioração do serviço até então prestado pelaLight, empresa concessionária do setor. A exemplo de outras cidades e capitais brasileiras, desde o início do século XX a empresa canadense Light and Power explorava os serviços de transporte público e fornecimento de energia elétrica. Mas, desde o inicio da década de 1940, a companhia demonstrava grande dificuldade não apenas em atender as necessidades de ampliação do fornecimento de seus serviços, na proporção exigida pelo rápido crescimento da cidade da São Paulo, mas até mesmo de continuar operando o sistema sob seu encargo de maneira satisfatória. Como assinala Adriano Luiz Duarte,

Levando-se em conta a necessidade da construção de subestações, eletrificação, instalação de dormentes etc., estimava-se que, apenas para colocar em funcionamento com plena capacidade os serviços já existentes, seriam necessários, aproximadamente, 1 bilhão de cruzeiros. Em junho de 1941, através do Decreto-Lei nº  3.366, deixou de ser compulsória para a Light a manutenção do serviço de bondes e, assim, o pouco de investimento que havia até aquele momento, desapareceu completamente. O decreto, de fato, tinha o objetivo de neutralizar as seguidas pressões da companhia, que ameaçava com o constante risco de paralisação dos serviços. Mas o tiro saiu pela culatra, a qualidade dos serviços despencou ainda mais e a negociação do espólio da concessionária se tornou iminente, embora já se soubesse que a compra do refugo da empresa não seria a solução para os problemas de transporte da cidade.[6]

Foi, portanto, um sistema de transporte público estagnado e sucateado que passou para o controle da CMTC em julho de 1941. Pior ainda, ao se retirar de cena, a Light and Power desfalcou a frota levando consigo parte dos ônibus mais modernos, substituídos por veículos velhos e pior conservados, o que resultou no agravamento da superlotação e da precariedade do serviço. Em tais condições, a majoração do preço das passagens pela empresa municipal no dia 1º de agosto de 1947, em percentuais que variavam de 100% a 150% foi o estopim para um conflito de graves proporções.
A partir das 11 horas da manhã, populares armados de paus e pedras começaram a depredar e a incendiar ônibus e bondes na região do Largo do São Francisco e de lá irradiaram-se para outros logradouros da capital paulista, como a avenida Brigadeiro Luiz Antonio, a Praça João Mendes, a Praça da Sé, a Praça do Patriarca e o bairro da Liberdade. Enfurecidos, atiravam bolas de gude sob as patas dos cavalos e ameaçavam de linchamento os bombeiros que tentavam apagar o fogo dos veículos incendiados. Não apenas os veículos sob a administração da CMTC foram alvos da indignação coletiva, vejamos o que diz Adriano Duarte,

No vale do Anhangabaú, os populares invadiram os fundos da sede da prefeitura e tiraram de lá arquivos, quadros, mesas e cadeiras, que foram arrastados para o meio da rua e rapidamente se transformaram numa imensa fogueira. Um oficial da cavalaria foi cercado pela multidão e derrubado do cavalo. Assustados com o ímpeto do ataque, os cavalarianos não ousaram arremeter contra a população e foram encurralados. Amedrontados, os soldados da força pública engatilharam os mosquetões, e a correria e o pânico foram gerais, aumentando ainda mais a confusão. De repente, do meio da multidão, surgiu um amotinado que, caminhando lentamente, abriu a camisa e gritou para os soldados: “Atire, atire e mate um cidadão brasileiro!”. Os soldados recuaram, mas para dispersar a multidão dispararam diversos morteiros e bombas, “cujas fumaças negras cobriam toda a extensão do vale”[7]
Uma multidão se postou em frente ao prédio da prefeitura, na expectativa de que o prefeito pudesse aparecer e ouvir suas reivindicações, o que não aconteceu. Um grupo então começou a atirar pedras, estilhaçando as vidraças. A pedras alcançaram o gabinete do prefeito, destruindo os telefones que se encontravam sobre sua mesa de trabalho. Também foram atingidas as salas do chefe de gabinete e de diversos assessores técnicos. O major Teles Marcondes, da força policial, foi apeado do cavalo e apedrejado, quando tentava prender um revoltoso. Duas caminhonetes oficiais foram tombadas e incendiadas, e o próprio carro oficial do prefeito Stokler das Neves foi apedrejado, não sendo incendiado porque a polícia conseguiu resgatá-lo da multidão. O secretário dos negócios jurídicos, Paulo Lauro, não teve seu carro oficial queimado e depredado porque um contínuo da prefeitura retirou-lhe as placas brancas, e assim passou tranqüilamente pela multidão. Os funcionários da prefeitura não conseguiam sair do prédio e a polícia não conseguia entrar. Espertamente, no momento em que o ataque era mais intenso, os funcionários hastearam a bandeira do Brasil numa das sacadas do edifício, para apaziguar a multidão[8].

Não obstante a radicalidade de seus atos, os manifestantes demonstravam clareza na escolha de seus alvos e consciência na condução de suas ações,

Também o prédio da Light foi atingido por pedras e paus. Todas as vidraças da sua parte frontal foram estilhaçadas. Na Rua da Consolação, esquina com Alameda Santos, um ônibus foi parado pela multidão e o motorista, assustado, disparou um tiro de revólver que atingiu um menor de idade. Não fosse a rápida atuação da força pública, ele teria sido linchado. Mas nenhum outro motorista ou motorneiro foi molestado. A conduta da multidão em geral se repetia: os populares cercavam os ônibus ou bondes e exigiam que os condutores abandonassem seus postos e que todos os usuários descessem, em seguida o depredaram e incendiavam, sem ferir nenhuma pessoa. Na esquina da Rua da Figueira com a Avenida Rangel Pestana, a multidão invadiu um posto de gasolina e saqueou apenas o suficiente para atear fogo aos ônibus e bondes. Mas o posto não foi depredado, nem tampouco roubado[9].

A consciência popular expressa nestas atitudes interpela criticamente as representações elitistas e conservadoras que tendem a interpretar as irrupções de rebeldia das massas como demonstrações de irracionalidade e tipificar sua insurgência como atos de vandalismo. Na contramão destas visões, historiadores como Eric Hobsbawn, E. P. Thompson e George Rudé, expoentes da História Social Inglesa, chamam a atenção para a posse, por parte das chamadas classes e camadas inferiores da sociedade, de uma cultura própria, uma moralidade compartilhada e formas particulares de organização e autodefesa[10].
No dia 2 de agosto, a diretoria da CMTC divulgava o balanço das manifestações populares do dia anterior: 16 ônibus foram completamente destruídos e 78 danificados, 5 bondes destruídos e 242 depredados, além de 29 reboques danificados. No total, 370 coletivos ficaram fora de serviço, restando para circulação apenas 380 bondes e 200 ônibus[11].
A resposta das autoridades foi a mobilização de um grandioso aparato de segurança para restabelecer a “paz” e a “tranquilidade”. No dia seguinte, um efetivo de 850 homens, composto por investigadores da Delegacia de Ordem Política e Social, guardas noturnos, cavalarianos da Força Pública e guardas civis, saiu às ruas para prevenir novas depredações; 240 deles, fardados, foram posicionados no interior dos ônibus e bondes que circulavam pela cidade. As autoridades e a imprensa conservadora desfecharam uma campanha contra parlamentares do Partido Comunista do Brasil (PCB) e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o jornal comunista Hoje, os Comitês Populares Democráticos (CPDs) e as associações de moradores dos bairros, procurando responsabilizá-los pela organização da mobilização popular. Não sem motivo, considerando que o PCB — desde sua legalização, com o aparecimento do jornal legal dos comunistas e a organização dos CPDs —, juntamente com militantes trabalhistas (PTB) e socialistas (PSB) vinham se notabilizando na defesa de várias reivindicações populares, entre as quais, a melhoria da infraestrutura dos bairros, da moradia, do sistema de transportes e contra a carestia de vida. Como consequência desta perseguição, os líderes sindicais e militantes comunistas João Peloso, Iguatemy Lopes de Oliveira, Alberto Zamignani, Joaquim Rodrigues Correia, Cláudio Savieto e Carmem Savieto foram presos entre as 23 horas e meia-noite do dia primeiro em suas casas e apesar de comprovarem que durante as manifestações encontravam-se em seus respectivos locais de trabalho, permaneceram encarcerados por quase um mês.
Após intransigência inicial expressa na recusa em admitir a possibilidade de diminuição do preço das passagens, o governador Ademar de Barros anunciou, no dia 2 de outubro, a redução da tarifa, exigindo que a CMTC se posicionasse a respeito. No dia seguinte as passagens foram rebaixadas.

O quebra-quebra das barcas de Niterói em maio de 1959
No final da década de 1950, o Brasil vivia uma intensificação de seu processo de industrialização capitalista como parte da estratégia desenvolvimentista levada a efeito pelo governo do presidente Juscelino Kubitschek. Ocorreu que, no curso deste processo, os grandes centros urbanos cresceram, via de regra, sem planificação, engendrando o agravamento dos seus problemas e, consequentemente, acentuando as tensões e os conflitos nas grandes cidades brasileiras. Nestas circunstâncias, o setor dos transportes, como vem sendo observado aqui, acaba funcionando, muitas vezes, como uma espécie de catalisador da insatisfação popular. O quebra-quebra das barcas de 1959 ilustra bem esta situação.
Até a inauguração da ponte Rio-Niterói, em 1975, o transporte marítimo era a principal via de ligação entre as cidades de Niterói e Rio de Janeiro. Desde meados do século XIX, este serviço era realizado por empresas privadas que exploravam a rota de travessia. A partir de 1953, a Companhia Cantareira e a Viação Fluminense, responsáveis pelo serviço, passaram a ser controladas pela empresa Frota Barreiro S/A, de propriedade do grupo empresarial da família Carreteiro. Após um começo promissor, com a modernização da frota e a redução do tempo de travessia entre as duas cidades, a operação do serviço passou a ser marcada por sucessivos aumentos no preço das passagens. Não obstante, os proprietários do grupo pressionavam constantemente o governo em prol da obtenção de mais subsídios, sob a alegação de que o custo da prestação do serviço era inferior às receitas obtidas.
Em maio de 1959 os empresários se recusaram a conceder aos trabalhadores o reajuste salarial estabelecido pelo governo, o que provocou a deflagração de uma greve por parte do Sindicato dos Marítimos na madrugada do dia 22. Com a paralisação dos trabalhadores, os empresários solicitaram e o governo enviou um destacamento de fuzileiros navais para manter as barcas em funcionamento. Despreparados para a função, os fuzileiros navais utilizaram de certa brutalidade para organizar o acesso da população às barcas em uma manhã já de tensão e muita confusão. O arremesso de uma pedra contra uma das vitrines da estação por parte de algum usuário insatisfeito foi respondido com rajadas de metralhadora, ocasionando o início de uma revolta popular. Indignada, a população arremeteu primeiro contra as embarcações, incendiando-as, e em seguida contra a própria estação, que foi destruída. Crescentemente determinadas e enfurecidas, as massas se dirigiram à sede da companhia, que invadiram e depredaram, queimando móveis e arquivos em plena rua. Sentindo-se aviltados perante os sinais ostensivos de enriquecimento por parte da família Carreteiro, os manifestantes rumaram para a residência dos proprietários do grupo, a cerca de três quilômetros da estação das barcas. Lá, tomaram de assalto o imóvel, destruindo publicamente os bens pessoais dos empresários, desde o mobiliário, até vestimentas, joias e outros objetos de luxo, culminando o ato de revolta com o incêndio do imóvel, não sem antes inscreverem em uma das paredes da mansão: “aqui jaz as fortunas do Grupo Carreteiro, acumuladas com o sacrifício do povo”[12].
O saldo da revolta foi marcante. Além da destruição material, mais de cem feridos e seis mortos. Após o incidente, o grupo Carreteiro teve sua autorização para operar o serviço de barcas cassado e todo o sistema foi estatizado.

O quebra-quebra dos ônibus de Salvador em 1981.
Uma combinação semelhante de superexploração dos trabalhadores, má qualidade dos serviços prestados e elevação abusiva dos preços das passagens funcionou como deflagradora do quebra-quebra dos ônibus na capital baiana, em 1981. Sua ocorrência, ainda durante a vigência formal da ditadura militar, sinalizou a aceleração do declínio do regime e fortaleceu o ciclo de retomada das grandes manifestações populares.
Agora o pano de fundo conjuntural era representado por um aprofundamento crescente da crise econômica que se abatia sobre o país, como desdobramento dos dois choques internacionais dos preços do petróleo na década de 70 (1973 e 1978) e a moratória internacional do México em 1980. Naquela conjuntura recessiva, os proprietários das empresas de ônibus que atuavam na capital baiana resolveram garantir seus ganhos às custas dos trabalhadores rodoviários e dos usuários dos serviços de transporte urbano. No primeiro caso, além do arrocho salarial crônico e da precarização das condições de trabalho, foram também realizados cortes na quantidade de vales a que os rodoviários tinham direito para seus deslocamentos nas linhas de ônibus municipais e metropolitanas, o que provocou uma manifestação de protesto por parte dos motoristas e cobradores de ônibus no princípio do mês de agosto. No segundo caso, foi anunciada a antecipação do aumento das tarifas para meados do mesmo mês.
Na noite do dia 20 de agosto de 1981, uma manifestação convocada pelo Movimento Contra a Carestia, com o apoio de sindicatos e partidos políticos de oposição, foi interrompida pelo desligamento do sistema de iluminação da Praça Municipal (onde ocorria o protesto), por ordem da Prefeitura de Salvador. A indignação provocada por este ato acendeu a ira popular, extravasada através do apedrejamento e incêndio de ônibus em vários locais da cidade. O resultado foram 343 veículos depredados e 10 incendiados, segundo os dados do Sindicato da Empresas de Transporte Público de Salvador (SETPS).

Em 21 de agosto, as depredações continuaram durante todo o dia. Diante dos ataques em vários bairros da cidade, as empresas recolheram seus ônibus e estabelecimentos comerciais fecharam as portas. As repartições públicas não funcionaram. Relatos foram publicados apontando a destruição de uma agência bancária e de um supermercado no bairro de Nazaré, além do prédio do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) ter sido alvo de apedrejamento. A imprensa divulgou que um terço dos ônibus havia sido depredado na noite do dia 20[13].

O quebra-quebra de 1981 foi reprimido através da violência policial contra manifestantes populares e a prisão de lideranças populares e de oposição[14]. Violência e repressão que acentuaram o desgaste do regime militar e seus aliados municipais e estaduais, provocando crises e fraturas no bloco político que, entretanto, ainda permaneceria a frente do governo baiano, nos 25 anos seguintes.

O Quebra-quebra dos ônibus do Rio de Janeiro em 1987
Desde janeiro de 1985, a sociedade brasileira vivia um momento singular no processo de transição do regime militar para a institucionalidade representativa liberal. Encerrado o ciclo de tentativa de autorreforma do regime, cujos primórdios remontam à política de distensão do presidente Ernesto Geisel (1974-1978), o país vivia sob a égide de um governo de transição, resultante da formação de uma ampla coalizão política entre a maioria dos setores da oposição democrática à ditadura e dissidentes de última hora do regime ditatorial. Este governo, ainda gerado pelos processos espúrios do Colégio Eleitoral, instituído apenas para legitimar a sucessão de representantes do regime militar à frente da presidência da república nas eleições anteriores, herdou também da ditadura, além de todo um entulho autoritário político-institucional, a estagnação econômica e a crise social. Após um sucesso momentâneo do plano de contenção inflacionária colocado em prática pelo governo Sarney (1985-1990), voltaram a se manifestar, em 1987, as elevadas taxas inflacionárias, a recessão econômica e a depauperação de grandes massas da população trabalhadora decorrentes da deterioração acelerada do poder de compra dos salários. Foi em uma conjuntura como esta que a Justiça do Rio de Janeiro autorizou uma elevação substantiva do preço das passagens dos ônibus da capital fluminense no mês de junho de 1987. Na época, a antiga capital imperial e federal padecia uma situação de esvaziamento econômico resultante da perda de sua condição de capital federal e crise de identidade política decorrente de sua incorporação ao Estado do Rio de Janeiro no ano de 1975.
Um dos mais importantes polos da luta oposicionista durante os anos do regime de 1964, a cidade vinha se transformando também em um vulcão social em consequência da pobreza de grande parte de sua população, somada à flagrante desigualdade social. Em um contexto como este, a decisão da Justiça do Estado de, atendendo a solicitações dos donos das empresas de ônibus, permitir o aumento no preço das passagens desencadeou uma nova onda de revolta popular. Segundo a imprensa da época, mais de 30 000 pessoas tomaram parte em um movimento espontâneo de indignação popular, concentrado nas ruas do centro da cidade, que resultou na depredação de cerca de cem ônibus e na queima de 19, mas também no saque de diversas lojas[15].
A imprensa da época se dividiu em face do movimento. O jornal oGlobo condenou a revolta popular, denunciando a barbárie e a irracionalidade das ações populares, chegando ao ponto de criticar a decisão da justiça de revogar a liminar que autorizava o aumento da passagem sob o argumento de que esta última decisão transmitia a impressão de que “a arruaça é capaz de dar frutos positivos”. Outro grande jornal carioca, oJornal do Brasil, por sua vez, denunciou a insensatez da concessão do reajuste de tarifa naquelas circunstâncias e identificou na revolta popular os sinais da perda de esperança do povo nas instituições e no processo democrático.

A Revolta do Buzú em Salvador (2003)
A mobilização social contra o aumento das passagens de ônibus, que ficaria conhecido nacional e internacionalmente como “Revolta do Buzú”, ocorreu na capital baiana entre a última semana de agosto e as duas primeiras semanas do mês de setembro de 2003.
Este acontecimento ocorreu em um contexto caracterizado pelo arrefecimento das expectativas mais otimistas em relação ao governo do presidente Lula, empossado em janeiro daquele ano, após as iniciativas adotadas no sentido da preservação de alguns elementos da política macroeconômica do governo anterior e na realização da reforma da Previdência Social.
Caracterizava, também, aquele contexto, a acentuação do desgaste do protagonismo político do grupo que, sob a liderança do ex-prefeito, ex-governador e então senador Antonio Carlos Magalhães, detinha a hegemonia política local.
Sua principal especificidade consistiu no segmento social que conduziu as manifestações contra a elevação do preço das passagens dos ônibus soteropolitanos: os estudantes secundaristas, em sua grande maioria, matriculados nas escolas públicas da cidade de Salvador.
É bem verdade que, desde a década de 40, a história registra a mobilização estudantil contra os aumentos das passagens dos ônibus e bondes e em prol da meia entrada/meia passagem para os estudantes, não apenas no uso dos transporte, mas também nos teatros e cinemas. Porém, jamais antes, a luta contra um reajuste na tarifa do transporte urbano conhecera entre os jovens estudantes secundaristas (alguns, na verdade, crianças de 12 e 13 anos de idade, cursando as últimas séries do ensino básico) uma militância tão abrangente e destacada.
Na última semana de agosto, a prefeitura de Salvador anunciou que autorizaria uma elevação no preço das passagens de ônibus de R$ 1, 30 para 1,50. Seria o sexto aumento em um período de quatro anos, em uma situação de virtual congelamento dos salários e em uma cidade que detinha o maior percentual de desemprego entre as capitais brasileiras. Os estudantes secundaristas então organizaram assembleias dentro e fora das escolas e iniciaram uma movimentação liderada pelos grêmios estudantis, exigindo o congelamento do preço da passagem no montante anterior (R$ 1,30). Um fórum de entidades secundaristas foi constituído com a finalidade de conduzir as mobilizações. Entre os dias 29 de agosto e três de setembro, foram realizadas uma série de ações de impacto. Os estudantes paralisaram as principais ruas e avenidas de Salvador, ingressaram nos ônibus pela porta da frente (as catracas se localizavam junto às portas traseiras), viajando sem pagar as passagens, paralisaram as aulas nas escolas e ocuparam a Câmara Municipal de Salvador.
Surpreendida pelas manifestações, as cúpulas governamentais no estado e no município divergiam acerca do tratamento a ser concedido aos manifestantes e suas reivindicações. O grupo mais “duro”, próximo ao ex-governador Antonio Carlos Magalhães, defendia a ampliação da repressão. Já um setor mais “conciliador”, ligado ao prefeito Antonio Imbassahy, advogava a negociação, negando-se, contudo, a reduzir o preço das passagens, propondo como alternativa o congelamento por um ano da nova tarifa e a criação de uma comissão mista, integrada por técnicos da prefeitura e representantes secundaristas, para estudar os custos do transporte urbano na capital baiana.
Em assembleia realizada na quadra do Sindicato dos Bancários (Ladeira dos Aflitos), no dia 4 de setembro, a maioria dos secundaristas presentes rechaçou as propostas da prefeitura. Uma parte dos dirigentes das entidades, no entanto, aceitou continuar as negociações com o poder municipal e passou a defender o final das manifestações. Entre aqueles que não aceitaram o acordo que fora proposto, começou a tomar forma uma corrente que defendia o passe livre para os estudantes. Passados mais alguns dias, as mobilizações entraram em refluxo, com a saída dos estudantes das ruas e o retorno às salas de aula. A prefeitura não rebaixou os preços das passagens, que, entretanto, não foram reajustadas até 2005, quando, na administração seguinte à de João Henrique Barradas Carneiro, foi mais uma vez elevada de R$ 1,50 para R$ 1,70. No ano de 2004, os estudantes de Florianópolis, em boa medida inspirados nas mobilizações de Salvador, lançaram o Movimento Catraca Livre e, em 2005, durante o Fórum Social Mundial, foi criado o Movimento Passe Livre (MPL)[16].

O Movimento Passe Livre e as manifestações de 2013 em Salvador e outras cidades brasileiras
Nos seis anos que se seguiram à “Revolta do Buzú”, os preços das passagens dos coletivos de Salvador foram reajustadas oito vezes, registrando uma elevação de R$ 1,50 para R$ 2,80. Em janeiro de 2011, quando da majoração da tarifa de R$ 2,30 para R$ 2,50, ocorreram manifestações em diversos pontos da cidade. Os organizadores destes protestos batizaram seu movimento como “Revolta do Buzú 2011”. Porém, a exemplo de seus antecessores, não lograram o atendimento de suas reivindicações. Pior ainda, não puderam também impedir que, um ano e meio depois, a autoridade municipal mais uma vez autorizasse o aumento do preço da passagem de R$ 2,50 para R$ 2,80.
Foi necessário que as mobilizações contra os aumentos das passagens em outras capitais, como Florianópolis, Goiânia, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, reacendesse o ânimo contestatório dos setores da sociedade soteropolitana contrários aos preços praticados pelas empresas de ônibus. A especificidade desta nova onda de manifestações, advinda: a) de sua conexão com um vasto movimento, que, de forma “espontânea”, acontecia simultaneamente em várias partes do país; b) da articulação da reivindicação da diminuição do preço das passagens e da defesa do passe livre nos ônibus com as bandeiras da luta contra a corrupção e contra os gastos das autoridades com a organização da Copa do Mundo de 2014.
Desta forma, o Movimento Passe Livre de Salvador convocou, no dia 15 de junho, uma assembleia no Passeio Público, com a participação de 1 200 pessoas aproximadamente, que se dirigiram à Estação da Lapa (um dos principais terminais de ônibus urbanos da capital baiana), onde realizaram um protesto contra o preço das passagens. No dia 17, uma nova passeata ocorreu entre a Avenida Tancredo Neves e o Shopping Iguatemi (o maior de Salvador), reunindo, segundo a polícia militar, cerca de cinco mil manifestantes. Em 20 de junho, os manifestantes se dirigiram à Arena Fonte Nova, onde se realizaria a partida entre Uruguai e Nigéria pela Copa das Confederações, e lá se deu um violento enfrentamento com a polícia: lixeiras foram incendiadas, banheiros químicos utilizados como barricadas, três ônibus queimados e dois micro-ônibus da Fifa depredados. O protesto foi reprimido pela Tropa de Choque utilizando spray de pimenta, bombas de efeito moral e disparos de balas de borracha, em uma operação que contou com apoio de helicópteros. Dois dias depois, após um novo choque com as forças repressivas, alguns manifestantes ocuparam a Câmara Municipal de Salvador com a intenção de pressionar o governo municipal a atender suas reivindicações. A ocupação se encerrou no dia 19 de agosto, com uma passeata até o terminal da Lapa sem que as principais demandas do movimento fossem atendidas. A única concessão da autoridade municipal foi a criação do bilhete único, o qual, a exemplo do que já acontecia em outros estados, “permite que o passageiro pague o valor de uma tarifa (R$ 2,80) no deslocamento com dois ônibus de áreas diferentes (indicados por letras no parabrisa), em um período máximo de duas horas”.
No dia 27 de junho, o MPL de Salvador divulgou uma carta aberta à sociedade baiana, com suas reivindicações. Além de reivindicar o passe livre para todos os estudantes e outras diversas propostas para a melhoria da qualidade do serviço de transportes públicos na capital baiana, o movimento também se posiciona contra a violência policial e o extermínio da população negra, contra o projeto de “Cura gay”, contra a construção da usina de Belo Monte e o extermínio das populações indígenas e a internação forçada de dependentes químicos, defendendo, em contrapartida, a reforma política, a destinação de 10% do PIB para a educação pública, a desmilitarização das polícias e a alteração do nome do Aeroporto Internacional de Salvador, do atual “Aeroporto Internacional Deputado Luiz Eduardo Magalhães” para o anterior “Aeroporto Dois de Julho”, data magna dos baianos[17].

Considerações parciais
A nova onda de manifestações de protestos populares contra os altos preços e a má qualidade do sistema de transportes públicos urbanos já pode ser considerada o acontecimento político-social mais relevante do ano. A exemplo do verificado em outras épocas, sua irrupção se dá em uma conjuntura marcada por um desgaste e ou esgotamento das fórmulas governamentais de gestão da problemática social, encontrando-se no seio desta a questão dos serviços oferecidos à população e no âmbito destes, em posição de centralidade, o problema do transporte urbano.
Se tomarmos a questão das tarifas de transportes urbanos sob o ponto de vista de uma abordagem crítica da economia política, constataremos que este se apresenta como portador de uma ambiguidade contraditória. Este sistema de transporte, plenamente inserido em uma economia capitalista de mercado, oferece um serviço com a finalidade de realizar o lucro empresarial, como qualquer outra mercadoria. Por outro lado, ao transportar para seus locais de trabalho milhões de trabalhadores que vão vender a sua força de trabalho, o serviço de transporte se reveste de dupla condição: de instrumento do processo de reprodução ampliada do capital através da exploração da força de trabalho e de meio de subsistência do trabalhador, que necessita do transporte para realizar o comércio de sua força de trabalho, e com isso obter sua sobrevivência, garantindo o consumo necessário, alimentação, vestimenta, moradia, etc., para mantê-lo em condições de continuar trabalhando. Esta múltipla condição (mercadoria-instrumento de reprodução do capital e meio de subsistência) transmite ao consumo deste serviço contradições inerentes ao papel que ocupa no modo de produção capitalista: a) na condição de mercadoria atende ao objetivo da realização do maior lucro possível, submetendo-se também às flutuações características das relações entre a oferta e a procura; b) como elemento integrado à infraestrutura do sistema de reprodução ampliada do capital, necessita operar com eficácia e custos razoáveis, de modo a otimizar o processo de produção e acumulação de riquezas ao qual se encontra conectado, c) enquanto meio de subsistência, comunica seu custo ao valor da força de trabalho, tornando desejável o seu rebaixamento ou manutenção nos níveis mais baixos possíveis, de modo a manter em níveis igualmente baixos o valor da força de trabalho. Trocando em miúdos, o preço da passagem de um meio de transporte urbano deve, ao mesmo tempo, atender ao interesse dos empresários do setor de transporte na realização máxima do lucro através da elevação da tarifa, além de atender, também, os interesses de empresários de outros setores, uma vez que a despesa com passagem, se levada em conta no cálculo do custo de vida, incidirá, em tese, sobre os salários e preços dos serviços prestados pelos trabalhadores, majorando-os, o que, inevitavelmente, repercute na fixação dos salários dos trabalhadores. Esta contradição dilacerante, que coloca os interesses dos empresários do setor de transportes em confronto potencial com os de seus congêneres de outras áreas e com a massa dos trabalhadores, só pode ser mitigada com intervenções pontuais do poder público, regulando o preço das passagens e instituindo mecanismos compensadores (meia-passagem, bilhete único, bilhetes de integração, etc.) ou solucionada, em definitivo, com a estatização do sistema e a instituição do passe livre.
Considerada sob o aspecto social — com o alargamento sistemático do perímetro dos grandes centros urbanos, sua conurbação em regiões metropolitanas também geograficamente alargadas—, a opção realizada pelo estado e as classes dirigentes brasileiras em prol do transporte rodoviário como instrumento, por excelência, de deslocamento, considerando a inviabilidade econômica, ambiental e infraestrutural de possibilitar que cada cidadão se desloque em seu próprio veículo para os centros econômicos das principais metrópoles, situa a problemática do transporte público no centro das preocupações sociais. Nesta posição central, a disponibilidade, qualidade, alcance e custo da passagem das linhas de ônibus, trens, bondes, barcas e metrô adquirem importância crescente nas preocupações não apenas dos trabalhadores, mas dos mais amplos segmentos da população, em particular das classes populares dos bairros periféricos, jovens estudantes, trabalhadores informais e desempregados. Basta que as condições de funcionamento do sistema de transportes, em qualquer dos aspectos referidos acima, ultrapasse o limite do aceitável pela massa de “usuários" para que uma onda de insatisfação se levante, podendo adquirir contornos de verdadeiras revoltas populares como nos exemplos anteriormente apresentados neste texto. A combinação da reincidência destes processos com o desgaste das fórmulas econômicas e políticas da coalizão governante no Brasil; a pressão dos efeitos da crise econômica global, que chega com mais força ao país e a descoberta, por setores da juventude, de novas formas de mobilização e ativismo social através do uso massivo das redes sociais conferiram aos movimentos de protesto que vem se realizando no Brasil uma amplitude e uma duração inauditas, cujos desdobramentos e resultados não se pode sequer projetar.


[1] Cf. JESUS, Ronaldo de. “A Revolta do Vintém e a crise da monarquia”. História Social. N. 12, Campinas, 2006, pp 73-89.
[2] Idem, pag. 6.
[3] Apud, JESUS, Ronaldo de. Op. Cit. p. 8.
[4] SAMPAIO, Consuelo Novais. "Movimentos Sociais na Bahia de 1930: Condições de Vida do Operariado". Universitas (29), jan./abr. 1992, pp 95-108.
[5] VAZQUEZ, Petilda Serva. Intervalo democrático e sindicalismo: Bahia – 1942/1947. Salvador, 1986, FFCH/UFBA (Dissertação de Mestrado).
[6] DUARTE, Adriano Luiz. “O ‘dia de São Bartolomeu’ e o ‘carnaval sem fim’: o quebra-quebra de ônibus e bondes na cidade de São Paulo em agosto de 1947”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, N. 50, p. 25-60 – 2005.
[7] Idem, p. 28.
[8] Idem, ibidem.
[9] Idem, p. 29.
[10] Cf. HOBSBAWN, Eric. Rebeldes Primitivos. Estudos das formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX. Rio de janeiro: Zahar, 1978. RUDÉ, George. Ideologia e Protesto Popular. Rio de janeiro: Zahar, 1982. THOMPSON, E.P. Tradición, revuelta y consciência de classe. Estudios sobre la crisis de la sociedade pré-industrial. Barcelona: Crítica, 1984.
[11] De acordo com a informação de Adriano Duarte, os bondes, nesta época, transportavam 65% do total de passageiros do sistema, cabendo aos ônibus o montante de 35%.
[12] ALMEIDA, M. C. V. de. CIDADE, POLÍTICA E MEMÓRIA. O QUEBRA-QUEBRA DAS BARCAS EM NITERÓI. ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005.
[13] Cf GUIMARÃES, Gabriel. QUEBRA-QUEBRA DOS ÔNIBUS NOS JORNAIS IMPRESSOS DE SALVADOR: A polarização do jornalismo a partir da cobertura de manifestação popular durante período de transição política. Disponível em: http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/7o-encontro-2009-1/QUEBRA-QUEBRA%20DOS%20ONIBUS%20NOS%20JORNAIS%20IMPRESSOS%20DE.pdf. Acesso em: 25 out. 2013.

[15] Assis Charleston José de Sousa. Grande imprensa e lutas sociais: os jornais e os populares na revolta popularcarioca de 1987. Disponível em:http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276740123_ARQUIVO_Grandeimprensaelutassocias-Anpuh2010.pdf. Acesso em: 20 out. 2013.
[16] Cf. FALCÓN, Natália; RIZÉRIO, Joana e QUERINO, Rangel. Revolta do Buzu: semelhanças e diferenças de dois movimentos que agitaram a cidade. Correio da Bahia, Edição de 31.07.2013.




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