Transporte Público Urbano e Protesto Social no Brasil Contemporâneo
O conjunto de manifestações populares que vem sacudindo diferentes
cidades brasileiras desde meado deste ano, a não ser por sua abrangência
nacional e sua simultaneidade, não constitui um fato novo na história social de
nosso país. Há mais de um século, mobilizações e atos de protesto têm
expressado o descontentamento de largos setores das classes e camadas
subalternas de nossa sociedade em relação às condições desfavoráveis de
existência que caracterizam sua presença nos centros urbanos, com especial
ênfase na questão do transporte. Acontecimentos como a Revolta do Vintém de
1879/1880 no Rio de Janeiro, o Quebra-Bondes soteropolitano de 1930, o
Quebra-quebra dos ônibus de Salvador em 1981 e as passeatas contra os aumentos
das tarifas de ônibus, em várias capitais brasileiras, incluindo Salvador em
2013, integram o longo repertório de lutas das populações urbanas contra o
estado de mal estar vigente em nossa sociedade.
A Revolta do Vintém –
Rio de Janeiro, Dezembro de 1879 - Janeiro de 1880.
São interessantes os paralelismos existentes entre esta pioneira mobilização
das massas populares contra o reajuste das tarifas dos transportes urbanos e as
manifestações protagonizadas pelo Movimento Passe Livre (MPL) e outras
organizações nos dias atuais. Em 13 de dezembro de 1879, o ministro da Fazenda,
em nome do governo imperial brasileiro, anunciava a criação de um imposto no
montante de vinte réis (um vintém), que seria adicionado ao preço das passagens
dos bondes a partir do dia primeiro de janeiro do ano seguinte. Este tributo
visava reforçar os cofres da coroa, acometidos por um déficit incômodo. Porém,
a flagrante situação de miserabilidade vivida por amplos setores das classes
populares da capital do império fez com que a medida fosse recebida com
desagrado não apenas pelos principais interessados, mas, também, pelos círculos
políticos da oposição republicana, assim como por uma boa parcela da imprensa
carioca. Intuindo as consequências perigosas das reações populares, a própriaBotanical
Garden Bond & Share, isto representaria o pagamento antecipado de
receita futura. Prevaleceu a determinação do governo, confirmada pelo
parlamento imperial, de efetuar a cobrança diretamente dos usuários.
Os órgãos de imprensa
mais sensíveis às necessidades populares, críticos desta iniciativa,
argumentavam que o tal imposto tinha uma incidência desigual e indiscriminada.
Diferentemente dos demais impostos existentes, que recaíam sobre rendas, lucros
e salários proporcionais aos ganhos, o novo imposto não diferenciava, ricos e
pobres, moradores dos bairros residenciais da zona sul da cidade (como
Botafogo, Jardim Botânico e Cosme Velho) do operariado mal remunerado dos
arredores do centro, como Cidade Nova e Catumbi. Já a imprensa mais
conservadora, receosa das reações populares, difundia seus apelos à ordem.
Lembrava que o governo havia tolerado sempre a manifestação de “representações
respeitosas” e, finalmente, pedia para que os descontentes, ao invés de
protestar, direcionassem sua energia para a eleição de bons políticos que se
ocupassem em defender os verdadeiros interesses da maioria da população.”[1]
Às vésperas da vigência do imposto, uma grande manifestação popular teve
lugar no Campo de São Cristovão, tendo como principal orador o tribuno
republicano Lopes Trovão. Em tom razoavelmente moderado e conciliador, Trovão
convidou os populares a apresentarem uma petição ao imperador solicitando a
revogação do imposto. Porém, já no caminho entre o local do comício e o Palácio
Imperial, os manifestantes foram confrontados por um efetivo de segurança que
incluía uma linha de cavalaria e mais de cem agentes armados com grossos e
compridos cassetetes conhecidos como “bengalas de Petrópolis”. Intimados a
recuar pelo segundo delegado de polícia da corte, a multidão, mais uma vez sob
a voz de comando de Lopes Trovão, que reafirmava o caráter pacífico da
manifestação, resolveu enfrentar as ameaças e intimidações da polícia e
prosseguir sua marcha rumo ao Paço de São Cristovão, na expectativa de serem
recebidos pelo imperador. Ao atingirem o portão de entrada do palácio,
perceberam que este se encontrava fechado e protegido por um pelotão de
cavalaria. Frustrados e indignados, muitos manifestantes já haviam dispersado
quando chegou uma mensagem do imperador se dispondo a receber uma comissão
constituída por representantes do povo. Constatando o esvaziamento do
movimento, a liderança da manifestação, que incluía, além de Lopes Trovão, José
do Patrocínio, optou por declinar do convite.
A esta altura, de acordo com Ronaldo de Jesus,
Demonstrando certo desconforto – mas fazendo a apologia da ordem estabelecida,
da conduta da polícia e da atitude do monarca –, a grande imprensa insistia em
afirmar que o único incidente grave ocorrido em 28 de dezembro teria sido a
recusa da comissão de “representantes do povo” em aceitar o chamado, ainda que
vacilante, de D. Pedro II. Contudo, a calma aparente seria abalada poucos dias
depois com a chegada do “ano novo” e do novo imposto. O movimento de protesto
passaria a incluir outros segmentos da população carioca menos “ordeiros”, e a
“civilidade” no episódio da tentativa de entrega da petição ao imperador
ficaria definitivamente para trás[2].
No dia 1º de janeiro, conforme programado, começou a vigorar o novo
preço das passagens. Por volta do meio-dia, diante do chafariz do Largo do Paço
(atual Praça 15 de Novembro), um outro comício foi realizado e mais uma vez
contando com a participação de Lopes Trovão, que incitou a população a resistir
de maneira pacífica e ordeira a cobrança do imposto. A aglomeração, entretanto,
espalhando-se pelas principais ruas do centro da cidade e bairros adjacentes
(Vila Izabel , São Cristovão, São Francisco Xavier), partiu para a depredação
dos bondes e enfrentamento com a forças policiais. Em manifestações de fúria
espontânea, populares espancavam os condutores, esfaqueavam os animais de
tração, arrancavam os trilhos e, com paralelepípedos e bondes atravessados nas
ruas, formavam barricadas. A policia reprimia as ações de protesto com disparos
de armas de fogo. Ao cabo do primeiro dia, já se contabilizavam três cadáveres
de manifestantes (um polonês, um francês e um pernambucano), além de vários
feridos à bala.
No dia seguinte, diante da gravidade dos incidentes, políticos e
publicistas, tanto conservadores quanto liberais, começaram a rever suas
posições, passando a advogar crescentemente a busca de um acordo que conduzisse
à suspensão da cobrança do imposto. Apenas o governo, através do conselheiro
Paranaguá, procurava exibir certa inflexibilidade, argumentando que a criação
do imposto fora o resultado de uma lei, e como tal deveria ser cumprida até que
fosse revogada pelo Legislativo. Deblaterando contra as “manifestações
sediciosas”, asseverava que Sua Majestade Imperial jamais se curvaria ante as
imposições das massas. Ao comentar as mortes dos manifestantes no primeiro dia
e consentir com a devolução dos cadáveres para sepultamento (circularam boatos
de que o governo, para impedir novos atos de protesto, tentara enterrá-los
secretamente à noite), externava também elementos seminais de sua concepção de
mundo, ao afirmar:
[...] pelo que diz respeito ao enterramento das vítimas do dia,
consentiria que o fizessem e que as levassem à sepultura, mas observava
entretanto que não se fizessem manifestações iguais a que em caso idêntico se
fizera em França e fora o princípio da revolução[3]
Em face da explosão da rebeldia popular e do elevado ônus gerado pela
truculenta repressão, as vozes que defendiam o cancelamento da cobrança do
imposto multiplicaram-se mesmo entre os círculos conservadores na imprensa e na
política, resultando na revogação do reajuste por parte das autoridades
imperiais. Não obstante, os atos de insubordinação protagonizados pelas massas
urbanas da capital imperial, compostas predominantemente por escravos,
ex-escravos e trabalhadores pobres, sinalizaram o avanço de um processo de
desgaste do governo monárquico, podendo ser caracterizados como uma expressão
do declínio histórico de um sistema político que conheceria sua débâcle definitiva
em menos de dez anos.
O Quebra Bondes de
Salvador – 4 de Outubro de 1930
A derrubada do
governo da chamada República Velha por uma coalizão formada por tenentes e
políticos dissidentes, a instabilidade política e o desconcerto dos círculos
dirigentes da sociedade baiana daí decorrentes propiciaram o pano de fundo
histórico para o Quebra Bondes soteropolitano de 1930.
Indignadas com a elevação recente dos preços das passagens dos bondes, das
tarifas de energia elétrica e dos teleféricos que ligavam a cidade baixa à
cidade alta, autorizadas pelo prefeito da cidade de Salvador, as classes subalternas
da capital baiana protagonizam uma manifestação de protesto popular. Na
ocasião, todos os serviços antes mencionados eram monopolizados pelas
companhias Linha Circular e Energia Elétrica da Bahia, subsidiárias da Eletric
Bond and Share e contra elas se voltou o ímpeto da fúria popular. Como
assinala Consuelo Novais Sampaio[4], em poucas horas 84 bondes foram queimados (mais de 2/3 da frota),
oficinas, garagens, terminais e depósitos do grupo espalhados pela cidade de
Salvador foram depredados, gerando um prejuízo estimado em mais de um milhão de
dólares. A exemplo do levante carioca, também aqui um grande jornal desempenhou
papel de ator, a multidão arremeteu contra o prédio recentemente construído do
jornal A Tarde e inutilizou parte da maquinaria que acabara de
ser importada.
A insurreição popular não poupou os representantes do poder político
local. O prefeito da cidade Francisco de Souza e o Delegado de Polícia, Pedro
Gordilho, foram caçados pelos manifestantes. No curso da perseguição, a multidão
cercou o prédio da Secretaria de Polícia e terminou sendo dispersada à bala
pela força policial com um resultado de quatro mortos.
Repercutindo, com algum atraso, o colapso do sistema de poder da
“república oligárquica”, o Quebra Bondes de 1930 foi também um episódio
constitutivo de uma longa série de mobilizações das classes populares de
Salvador contra a degradação de suas condições de existência decorrente da
violenta espoliação por parte das classes proprietárias com a anuência e o
concurso das autoridades governamentais.
O quebra-quebra de
ônibus e bondes na cidade de São Paulo em agosto de 1947
Foi em um contexto
histórico-político substancialmente distinto que se verificou o quebra-quebra
de ônibus e bondes da capital paulista no ano de 1947. O país vivia um período
de “intervalo democrático” — como bem o caracterizou a socióloga baiana Petilda
Serva Vasquez[5] — com a reconquista das
liberdades políticas interditadas durante a vigência do Estado Novo (1937-1945)
e a retomada da organização e mobilização das massas populares. Também aqui o
acontecimento que deflagrou a manifestação da insatisfação popular foi o mesmo,
a elevação da tarifa das passagens de ônibus e bondes, porém as circunstâncias
em que isto se deu variaram um pouco. No mês de julho de 1947, todo o serviço
de transporte público urbano na cidade de São Paulo fora encampado pela
recém-criada Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC). Tal
encampação fora motivada pela sistemática deterioração do serviço até então
prestado pelaLight, empresa concessionária do setor. A exemplo de outras
cidades e capitais brasileiras, desde o início do século XX a empresa
canadense Light and Power explorava os serviços de transporte
público e fornecimento de energia elétrica. Mas, desde o inicio da década de
1940, a companhia demonstrava grande dificuldade não apenas em atender as
necessidades de ampliação do fornecimento de seus serviços, na proporção
exigida pelo rápido crescimento da cidade da São Paulo, mas até mesmo de
continuar operando o sistema sob seu encargo de maneira satisfatória. Como
assinala Adriano Luiz Duarte,
Levando-se em conta a necessidade da construção de subestações,
eletrificação, instalação de dormentes etc., estimava-se que, apenas para
colocar em funcionamento com plena capacidade os serviços já existentes, seriam
necessários, aproximadamente, 1 bilhão de cruzeiros. Em junho de 1941, através
do Decreto-Lei nº 3.366, deixou de ser
compulsória para a Light a manutenção do serviço de bondes e, assim, o pouco de investimento que
havia até aquele momento, desapareceu completamente. O decreto, de fato, tinha
o objetivo de neutralizar as seguidas pressões da companhia, que ameaçava com o
constante risco de paralisação dos serviços. Mas o tiro saiu pela culatra, a
qualidade dos serviços despencou ainda mais e a negociação do espólio da
concessionária se tornou iminente, embora já se soubesse que a compra do refugo
da empresa não seria a solução para os problemas de transporte da cidade.[6]
Foi, portanto, um sistema de transporte público estagnado e sucateado
que passou para o controle da CMTC em julho de 1941. Pior ainda, ao se retirar
de cena, a Light and Power desfalcou a frota levando consigo
parte dos ônibus mais modernos, substituídos por veículos velhos e pior
conservados, o que resultou no agravamento da superlotação e da precariedade do
serviço. Em tais condições, a majoração do preço das passagens pela empresa
municipal no dia 1º de agosto de 1947, em percentuais que variavam de 100% a
150% foi o estopim para um conflito de graves proporções.
A partir das 11 horas da manhã, populares armados de paus e pedras
começaram a depredar e a incendiar ônibus e bondes na região do Largo do São
Francisco e de lá irradiaram-se para outros logradouros da capital paulista,
como a avenida Brigadeiro Luiz Antonio, a Praça João Mendes, a Praça da Sé, a
Praça do Patriarca e o bairro da Liberdade. Enfurecidos, atiravam bolas de gude
sob as patas dos cavalos e ameaçavam de linchamento os bombeiros que tentavam
apagar o fogo dos veículos incendiados. Não apenas os veículos sob a
administração da CMTC foram alvos da indignação coletiva, vejamos o que diz
Adriano Duarte,
No vale do Anhangabaú, os populares invadiram os fundos da sede da
prefeitura e tiraram de lá arquivos, quadros, mesas e cadeiras, que foram
arrastados para o meio da rua e rapidamente se transformaram numa imensa
fogueira. Um oficial da cavalaria foi cercado pela multidão e derrubado do
cavalo. Assustados com o ímpeto do ataque, os cavalarianos não ousaram
arremeter contra a população e foram encurralados. Amedrontados, os soldados da
força pública engatilharam os mosquetões, e a correria e o pânico foram gerais,
aumentando ainda mais a confusão. De repente, do meio da multidão, surgiu um
amotinado que, caminhando lentamente, abriu a camisa e gritou para os soldados:
“Atire, atire e mate um cidadão brasileiro!”. Os soldados recuaram, mas para
dispersar a multidão dispararam diversos morteiros e bombas, “cujas fumaças
negras cobriam toda a extensão do vale”[7]
Uma multidão se postou em frente ao prédio da prefeitura, na expectativa
de que o prefeito pudesse aparecer e ouvir suas reivindicações, o que não
aconteceu. Um grupo então começou a atirar pedras, estilhaçando as vidraças. A
pedras alcançaram o gabinete do prefeito, destruindo os telefones que se
encontravam sobre sua mesa de trabalho. Também foram atingidas as salas do
chefe de gabinete e de diversos assessores técnicos. O major Teles Marcondes,
da força policial, foi apeado do cavalo e apedrejado, quando tentava prender um
revoltoso. Duas caminhonetes oficiais foram tombadas e incendiadas, e o próprio
carro oficial do prefeito Stokler das Neves foi apedrejado, não sendo
incendiado porque a polícia conseguiu resgatá-lo da multidão. O secretário dos
negócios jurídicos, Paulo Lauro, não teve seu carro oficial queimado e
depredado porque um contínuo da prefeitura retirou-lhe as placas brancas, e
assim passou tranqüilamente pela multidão. Os funcionários da prefeitura não
conseguiam sair do prédio e a polícia não conseguia entrar. Espertamente, no
momento em que o ataque era mais intenso, os funcionários hastearam a bandeira
do Brasil numa das sacadas do edifício, para apaziguar a multidão[8].
Não obstante a radicalidade de seus atos, os manifestantes demonstravam
clareza na escolha de seus alvos e consciência na condução de suas ações,
Também o prédio da Light foi atingido por pedras e paus. Todas as vidraças da sua parte frontal
foram estilhaçadas. Na Rua da Consolação, esquina com Alameda Santos, um ônibus
foi parado pela multidão e o motorista, assustado, disparou um tiro de revólver
que atingiu um menor de idade. Não fosse a rápida atuação da força pública, ele
teria sido linchado. Mas nenhum outro motorista ou motorneiro foi molestado. A
conduta da multidão em geral se repetia: os populares cercavam os ônibus ou
bondes e exigiam que os condutores abandonassem seus postos e que todos os
usuários descessem, em seguida o depredaram e incendiavam, sem ferir nenhuma
pessoa. Na esquina da Rua da Figueira com a Avenida Rangel Pestana, a multidão
invadiu um posto de gasolina e saqueou apenas o suficiente para atear fogo aos
ônibus e bondes. Mas o posto não foi depredado, nem tampouco roubado[9].
A consciência popular
expressa nestas atitudes interpela criticamente as representações elitistas e
conservadoras que tendem a interpretar as irrupções de rebeldia das massas como
demonstrações de irracionalidade e tipificar sua insurgência como atos de
vandalismo. Na contramão destas visões, historiadores como Eric Hobsbawn, E. P.
Thompson e George Rudé, expoentes da História Social Inglesa, chamam a atenção
para a posse, por parte das chamadas classes e camadas inferiores da sociedade,
de uma cultura própria, uma moralidade compartilhada e formas particulares de
organização e autodefesa[10].
No dia 2 de agosto, a
diretoria da CMTC divulgava o balanço das manifestações populares do dia
anterior: 16 ônibus foram completamente destruídos e 78 danificados, 5 bondes
destruídos e 242 depredados, além de 29 reboques danificados. No total, 370 coletivos
ficaram fora de serviço, restando para circulação apenas 380 bondes e 200
ônibus[11].
A resposta das autoridades foi a mobilização de um grandioso aparato de
segurança para restabelecer a “paz” e a “tranquilidade”. No dia seguinte, um
efetivo de 850 homens, composto por investigadores da Delegacia de Ordem
Política e Social, guardas noturnos, cavalarianos da Força Pública e guardas
civis, saiu às ruas para prevenir novas depredações; 240 deles, fardados, foram
posicionados no interior dos ônibus e bondes que circulavam pela cidade. As
autoridades e a imprensa conservadora desfecharam uma campanha contra
parlamentares do Partido Comunista do Brasil (PCB) e do Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), o jornal comunista Hoje, os Comitês Populares
Democráticos (CPDs) e as associações de moradores dos bairros, procurando
responsabilizá-los pela organização da mobilização popular. Não sem motivo,
considerando que o PCB — desde sua legalização, com o aparecimento do jornal
legal dos comunistas e a organização dos CPDs —, juntamente com militantes
trabalhistas (PTB) e socialistas (PSB) vinham se notabilizando na defesa de
várias reivindicações populares, entre as quais, a melhoria da infraestrutura
dos bairros, da moradia, do sistema de transportes e contra a carestia de vida.
Como consequência desta perseguição, os líderes sindicais e militantes
comunistas João Peloso, Iguatemy Lopes de Oliveira, Alberto Zamignani, Joaquim
Rodrigues Correia, Cláudio Savieto e Carmem Savieto foram presos entre as 23
horas e meia-noite do dia primeiro em suas casas e apesar de comprovarem que
durante as manifestações encontravam-se em seus respectivos locais de trabalho,
permaneceram encarcerados por quase um mês.
Após intransigência inicial expressa na recusa em admitir a possibilidade
de diminuição do preço das passagens, o governador Ademar de Barros anunciou,
no dia 2 de outubro, a redução da tarifa, exigindo que a CMTC se posicionasse a
respeito. No dia seguinte as passagens foram rebaixadas.
O quebra-quebra das
barcas de Niterói em maio de 1959
No final da década de 1950, o Brasil vivia uma intensificação de seu
processo de industrialização capitalista como parte da estratégia
desenvolvimentista levada a efeito pelo governo do presidente Juscelino
Kubitschek. Ocorreu que, no curso deste processo, os grandes centros urbanos
cresceram, via de regra, sem planificação, engendrando o agravamento dos seus
problemas e, consequentemente, acentuando as tensões e os conflitos nas grandes
cidades brasileiras. Nestas circunstâncias, o setor dos transportes, como vem
sendo observado aqui, acaba funcionando, muitas vezes, como uma espécie de
catalisador da insatisfação popular. O quebra-quebra das barcas de 1959 ilustra
bem esta situação.
Até a inauguração da ponte Rio-Niterói, em 1975, o transporte marítimo
era a principal via de ligação entre as cidades de Niterói e Rio de Janeiro.
Desde meados do século XIX, este serviço era realizado por empresas privadas
que exploravam a rota de travessia. A partir de 1953, a Companhia Cantareira e
a Viação Fluminense, responsáveis pelo serviço, passaram a ser controladas pela
empresa Frota Barreiro S/A, de propriedade do grupo empresarial da família
Carreteiro. Após um começo promissor, com a modernização da frota e a redução
do tempo de travessia entre as duas cidades, a operação do serviço passou a ser
marcada por sucessivos aumentos no preço das passagens. Não obstante, os
proprietários do grupo pressionavam constantemente o governo em prol da
obtenção de mais subsídios, sob a alegação de que o custo da prestação do
serviço era inferior às receitas obtidas.
Em maio de 1959 os
empresários se recusaram a conceder aos trabalhadores o reajuste salarial
estabelecido pelo governo, o que provocou a deflagração de uma greve por parte
do Sindicato dos Marítimos na madrugada do dia 22. Com a paralisação dos
trabalhadores, os empresários solicitaram e o governo enviou um destacamento de
fuzileiros navais para manter as barcas em funcionamento. Despreparados para a
função, os fuzileiros navais utilizaram de certa brutalidade para organizar o
acesso da população às barcas em uma manhã já de tensão e muita confusão. O
arremesso de uma pedra contra uma das vitrines da estação por parte de algum
usuário insatisfeito foi respondido com rajadas de metralhadora, ocasionando o
início de uma revolta popular. Indignada, a população arremeteu primeiro contra
as embarcações, incendiando-as, e em seguida contra a própria estação, que foi
destruída. Crescentemente determinadas e enfurecidas, as massas se dirigiram à
sede da companhia, que invadiram e depredaram, queimando móveis e arquivos em
plena rua. Sentindo-se aviltados perante os sinais ostensivos de enriquecimento
por parte da família Carreteiro, os manifestantes rumaram para a residência dos
proprietários do grupo, a cerca de três quilômetros da estação das barcas. Lá,
tomaram de assalto o imóvel, destruindo publicamente os bens pessoais dos
empresários, desde o mobiliário, até vestimentas, joias e outros objetos de
luxo, culminando o ato de revolta com o incêndio do imóvel, não sem antes
inscreverem em uma das paredes da mansão: “aqui jaz as fortunas do Grupo
Carreteiro, acumuladas com o sacrifício do povo”[12].
O saldo da revolta foi marcante. Além da destruição material, mais de
cem feridos e seis mortos. Após o incidente, o grupo Carreteiro teve sua
autorização para operar o serviço de barcas cassado e todo o sistema foi
estatizado.
O quebra-quebra dos
ônibus de Salvador em 1981.
Uma combinação semelhante de superexploração dos trabalhadores, má
qualidade dos serviços prestados e elevação abusiva dos preços das passagens
funcionou como deflagradora do quebra-quebra dos ônibus na capital baiana, em
1981. Sua ocorrência, ainda durante a vigência formal da ditadura militar,
sinalizou a aceleração do declínio do regime e fortaleceu o ciclo de retomada
das grandes manifestações populares.
Agora o pano de fundo conjuntural era representado por um aprofundamento
crescente da crise econômica que se abatia sobre o país, como desdobramento dos
dois choques internacionais dos preços do petróleo na década de 70 (1973 e
1978) e a moratória internacional do México em 1980. Naquela conjuntura
recessiva, os proprietários das empresas de ônibus que atuavam na capital
baiana resolveram garantir seus ganhos às custas dos trabalhadores rodoviários
e dos usuários dos serviços de transporte urbano. No primeiro caso, além do
arrocho salarial crônico e da precarização das condições de trabalho, foram
também realizados cortes na quantidade de vales a que os rodoviários tinham
direito para seus deslocamentos nas linhas de ônibus municipais e
metropolitanas, o que provocou uma manifestação de protesto por parte dos
motoristas e cobradores de ônibus no princípio do mês de agosto. No segundo
caso, foi anunciada a antecipação do aumento das tarifas para meados do mesmo
mês.
Na noite do dia 20 de agosto de 1981, uma manifestação convocada pelo
Movimento Contra a Carestia, com o apoio de sindicatos e partidos políticos de
oposição, foi interrompida pelo desligamento do sistema de iluminação da Praça
Municipal (onde ocorria o protesto), por ordem da Prefeitura de Salvador. A
indignação provocada por este ato acendeu a ira popular, extravasada através do
apedrejamento e incêndio de ônibus em vários locais da cidade. O resultado
foram 343 veículos depredados e 10 incendiados, segundo os dados do Sindicato
da Empresas de Transporte Público de Salvador (SETPS).
Em 21 de agosto, as depredações continuaram durante todo o dia. Diante
dos ataques em vários bairros da cidade, as empresas recolheram seus ônibus e
estabelecimentos comerciais fecharam as portas. As repartições públicas não
funcionaram. Relatos foram publicados apontando a destruição de uma agência
bancária e de um supermercado no bairro de Nazaré, além do prédio do Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) ter sido alvo de
apedrejamento. A imprensa divulgou que um terço dos ônibus havia sido depredado
na noite do dia 20[13].
O quebra-quebra de
1981 foi reprimido através da violência policial contra manifestantes populares
e a prisão de lideranças populares e de oposição[14]. Violência e repressão que acentuaram o desgaste do regime militar e
seus aliados municipais e estaduais, provocando crises e fraturas no bloco
político que, entretanto, ainda permaneceria a frente do governo baiano, nos 25
anos seguintes.
O Quebra-quebra dos
ônibus do Rio de Janeiro em 1987
Desde janeiro de 1985, a sociedade brasileira vivia um momento singular
no processo de transição do regime militar para a institucionalidade
representativa liberal. Encerrado o ciclo de tentativa de autorreforma do
regime, cujos primórdios remontam à política de distensão do presidente Ernesto
Geisel (1974-1978), o país vivia sob a égide de um governo de transição,
resultante da formação de uma ampla coalizão política entre a maioria dos
setores da oposição democrática à ditadura e dissidentes de última hora do
regime ditatorial. Este governo, ainda gerado pelos processos espúrios do
Colégio Eleitoral, instituído apenas para legitimar a sucessão de
representantes do regime militar à frente da presidência da república nas
eleições anteriores, herdou também da ditadura, além de todo um entulho
autoritário político-institucional, a estagnação econômica e a crise social.
Após um sucesso momentâneo do plano de contenção inflacionária colocado em
prática pelo governo Sarney (1985-1990), voltaram a se manifestar, em 1987, as
elevadas taxas inflacionárias, a recessão econômica e a depauperação de grandes
massas da população trabalhadora decorrentes da deterioração acelerada do poder
de compra dos salários. Foi em uma conjuntura como esta que a Justiça do Rio de
Janeiro autorizou uma elevação substantiva do preço das passagens dos ônibus da
capital fluminense no mês de junho de 1987. Na época, a antiga capital imperial
e federal padecia uma situação de esvaziamento econômico resultante da perda de
sua condição de capital federal e crise de identidade política decorrente de
sua incorporação ao Estado do Rio de Janeiro no ano de 1975.
Um dos mais
importantes polos da luta oposicionista durante os anos do regime de 1964, a
cidade vinha se transformando também em um vulcão social em consequência da
pobreza de grande parte de sua população, somada à flagrante desigualdade
social. Em um contexto como este, a decisão da Justiça do Estado de, atendendo
a solicitações dos donos das empresas de ônibus, permitir o aumento no preço
das passagens desencadeou uma nova onda de revolta popular. Segundo a imprensa
da época, mais de 30 000 pessoas tomaram parte em um movimento espontâneo de
indignação popular, concentrado nas ruas do centro da cidade, que resultou na
depredação de cerca de cem ônibus e na queima de 19, mas também no saque de
diversas lojas[15].
A imprensa da época se dividiu em face do movimento. O jornal oGlobo condenou
a revolta popular, denunciando a barbárie e a irracionalidade das ações
populares, chegando ao ponto de criticar a decisão da justiça de revogar a
liminar que autorizava o aumento da passagem sob o argumento de que esta última
decisão transmitia a impressão de que “a arruaça é capaz de dar frutos
positivos”. Outro grande jornal carioca, oJornal do Brasil, por sua vez,
denunciou a insensatez da concessão do reajuste de tarifa naquelas
circunstâncias e identificou na revolta popular os sinais da perda de esperança
do povo nas instituições e no processo democrático.
A Revolta do Buzú em
Salvador (2003)
A mobilização social contra o aumento das passagens de ônibus, que
ficaria conhecido nacional e internacionalmente como “Revolta do Buzú”, ocorreu
na capital baiana entre a última semana de agosto e as duas primeiras semanas
do mês de setembro de 2003.
Este acontecimento ocorreu em um contexto caracterizado pelo
arrefecimento das expectativas mais otimistas em relação ao governo do
presidente Lula, empossado em janeiro daquele ano, após as iniciativas adotadas
no sentido da preservação de alguns elementos da política macroeconômica do
governo anterior e na realização da reforma da Previdência Social.
Caracterizava, também, aquele contexto, a acentuação do desgaste do
protagonismo político do grupo que, sob a liderança do ex-prefeito,
ex-governador e então senador Antonio Carlos Magalhães, detinha a hegemonia
política local.
Sua principal especificidade consistiu no segmento social que conduziu
as manifestações contra a elevação do preço das passagens dos ônibus
soteropolitanos: os estudantes secundaristas, em sua grande maioria,
matriculados nas escolas públicas da cidade de Salvador.
É bem verdade que, desde a década de 40, a história registra a
mobilização estudantil contra os aumentos das passagens dos ônibus e bondes e
em prol da meia entrada/meia passagem para os estudantes, não apenas no uso dos
transporte, mas também nos teatros e cinemas. Porém, jamais antes, a luta
contra um reajuste na tarifa do transporte urbano conhecera entre os jovens
estudantes secundaristas (alguns, na verdade, crianças de 12 e 13 anos de
idade, cursando as últimas séries do ensino básico) uma militância tão
abrangente e destacada.
Na última semana de agosto, a prefeitura de Salvador anunciou que autorizaria
uma elevação no preço das passagens de ônibus de R$ 1, 30 para 1,50. Seria o
sexto aumento em um período de quatro anos, em uma situação de virtual
congelamento dos salários e em uma cidade que detinha o maior percentual de
desemprego entre as capitais brasileiras. Os estudantes secundaristas então
organizaram assembleias dentro e fora das escolas e iniciaram uma movimentação
liderada pelos grêmios estudantis, exigindo o congelamento do preço da passagem
no montante anterior (R$ 1,30). Um fórum de entidades secundaristas foi
constituído com a finalidade de conduzir as mobilizações. Entre os dias 29 de
agosto e três de setembro, foram realizadas uma série de ações de impacto. Os
estudantes paralisaram as principais ruas e avenidas de Salvador, ingressaram
nos ônibus pela porta da frente (as catracas se localizavam junto às portas
traseiras), viajando sem pagar as passagens, paralisaram as aulas nas escolas e
ocuparam a Câmara Municipal de Salvador.
Surpreendida pelas manifestações, as cúpulas governamentais no estado e
no município divergiam acerca do tratamento a ser concedido aos manifestantes e
suas reivindicações. O grupo mais “duro”, próximo ao ex-governador Antonio
Carlos Magalhães, defendia a ampliação da repressão. Já um setor mais
“conciliador”, ligado ao prefeito Antonio Imbassahy, advogava a negociação,
negando-se, contudo, a reduzir o preço das passagens, propondo como alternativa
o congelamento por um ano da nova tarifa e a criação de uma comissão mista,
integrada por técnicos da prefeitura e representantes secundaristas, para
estudar os custos do transporte urbano na capital baiana.
Em assembleia
realizada na quadra do Sindicato dos Bancários (Ladeira dos Aflitos), no dia 4
de setembro, a maioria dos secundaristas presentes rechaçou as propostas da
prefeitura. Uma parte dos dirigentes das entidades, no entanto, aceitou
continuar as negociações com o poder municipal e passou a defender o final das
manifestações. Entre aqueles que não aceitaram o acordo que fora proposto,
começou a tomar forma uma corrente que defendia o passe livre para os
estudantes. Passados mais alguns dias, as mobilizações entraram em refluxo, com
a saída dos estudantes das ruas e o retorno às salas de aula. A prefeitura não
rebaixou os preços das passagens, que, entretanto, não foram reajustadas até
2005, quando, na administração seguinte à de João Henrique Barradas Carneiro,
foi mais uma vez elevada de R$ 1,50 para R$ 1,70. No ano de 2004, os estudantes
de Florianópolis, em boa medida inspirados nas mobilizações de Salvador,
lançaram o Movimento Catraca Livre e, em 2005, durante o Fórum Social Mundial,
foi criado o Movimento Passe Livre (MPL)[16].
O Movimento Passe
Livre e as manifestações de 2013 em Salvador e outras cidades brasileiras
Nos seis anos que se seguiram à “Revolta do Buzú”, os preços das
passagens dos coletivos de Salvador foram reajustadas oito vezes, registrando
uma elevação de R$ 1,50 para R$ 2,80. Em janeiro de 2011, quando da majoração
da tarifa de R$ 2,30 para R$ 2,50, ocorreram manifestações em diversos pontos
da cidade. Os organizadores destes protestos batizaram seu movimento como
“Revolta do Buzú 2011”. Porém, a exemplo de seus antecessores, não lograram o
atendimento de suas reivindicações. Pior ainda, não puderam também impedir que,
um ano e meio depois, a autoridade municipal mais uma vez autorizasse o aumento
do preço da passagem de R$ 2,50 para R$ 2,80.
Foi necessário que as mobilizações contra os aumentos das passagens em
outras capitais, como Florianópolis, Goiânia, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo
Horizonte, reacendesse o ânimo contestatório dos setores da sociedade
soteropolitana contrários aos preços praticados pelas empresas de ônibus. A
especificidade desta nova onda de manifestações, advinda: a) de sua conexão com
um vasto movimento, que, de forma “espontânea”, acontecia simultaneamente em
várias partes do país; b) da articulação da reivindicação da diminuição do
preço das passagens e da defesa do passe livre nos ônibus com as bandeiras da
luta contra a corrupção e contra os gastos das autoridades com a organização da
Copa do Mundo de 2014.
Desta forma, o Movimento Passe Livre de Salvador convocou, no dia 15 de
junho, uma assembleia no Passeio Público, com a participação de 1 200 pessoas
aproximadamente, que se dirigiram à Estação da Lapa (um dos principais
terminais de ônibus urbanos da capital baiana), onde realizaram um protesto
contra o preço das passagens. No dia 17, uma nova passeata ocorreu entre a
Avenida Tancredo Neves e o Shopping Iguatemi (o maior de Salvador), reunindo,
segundo a polícia militar, cerca de cinco mil manifestantes. Em 20 de junho, os
manifestantes se dirigiram à Arena Fonte Nova, onde se realizaria a partida
entre Uruguai e Nigéria pela Copa das Confederações, e lá se deu um violento
enfrentamento com a polícia: lixeiras foram incendiadas, banheiros químicos
utilizados como barricadas, três ônibus queimados e dois micro-ônibus da Fifa
depredados. O protesto foi reprimido pela Tropa de Choque utilizando spray de
pimenta, bombas de efeito moral e disparos de balas de borracha, em uma
operação que contou com apoio de helicópteros. Dois dias depois, após um novo
choque com as forças repressivas, alguns manifestantes ocuparam a Câmara
Municipal de Salvador com a intenção de pressionar o governo municipal a
atender suas reivindicações. A ocupação se encerrou no dia 19 de agosto, com
uma passeata até o terminal da Lapa sem que as principais demandas do movimento
fossem atendidas. A única concessão da autoridade municipal foi a criação do
bilhete único, o qual, a exemplo do que já acontecia em outros estados,
“permite que o passageiro pague o valor de uma tarifa (R$ 2,80) no deslocamento
com dois ônibus de áreas diferentes (indicados por letras no parabrisa), em um
período máximo de duas horas”.
No dia 27 de junho, o
MPL de Salvador divulgou uma carta aberta à sociedade baiana, com suas
reivindicações. Além de reivindicar o passe livre para todos os estudantes e
outras diversas propostas para a melhoria da qualidade do serviço de
transportes públicos na capital baiana, o movimento também se posiciona contra
a violência policial e o extermínio da população negra, contra o projeto de
“Cura gay”, contra a construção da usina de Belo Monte e o extermínio das
populações indígenas e a internação forçada de dependentes químicos, defendendo,
em contrapartida, a reforma política, a destinação de 10% do PIB para a
educação pública, a desmilitarização das polícias e a alteração do nome do
Aeroporto Internacional de Salvador, do atual “Aeroporto Internacional Deputado
Luiz Eduardo Magalhães” para o anterior “Aeroporto Dois de Julho”, data magna
dos baianos[17].
Considerações
parciais
A nova onda de manifestações de protestos populares contra os altos
preços e a má qualidade do sistema de transportes públicos urbanos já pode ser
considerada o acontecimento político-social mais relevante do ano. A exemplo do
verificado em outras épocas, sua irrupção se dá em uma conjuntura marcada por
um desgaste e ou esgotamento das fórmulas governamentais de gestão da
problemática social, encontrando-se no seio desta a questão dos serviços
oferecidos à população e no âmbito destes, em posição de centralidade, o
problema do transporte urbano.
Se tomarmos a questão das tarifas de transportes urbanos sob o ponto de
vista de uma abordagem crítica da economia política, constataremos que este se
apresenta como portador de uma ambiguidade contraditória. Este sistema de
transporte, plenamente inserido em uma economia capitalista de mercado, oferece
um serviço com a finalidade de realizar o lucro empresarial, como qualquer
outra mercadoria. Por outro lado, ao transportar para seus locais de trabalho
milhões de trabalhadores que vão vender a sua força de trabalho, o serviço de
transporte se reveste de dupla condição: de instrumento do processo de
reprodução ampliada do capital através da exploração da força de trabalho e de
meio de subsistência do trabalhador, que necessita do transporte para realizar
o comércio de sua força de trabalho, e com isso obter sua sobrevivência,
garantindo o consumo necessário, alimentação, vestimenta, moradia, etc., para
mantê-lo em condições de continuar trabalhando. Esta múltipla condição
(mercadoria-instrumento de reprodução do capital e meio de subsistência)
transmite ao consumo deste serviço contradições inerentes ao papel que ocupa no
modo de produção capitalista: a) na condição de mercadoria atende ao objetivo
da realização do maior lucro possível, submetendo-se também às flutuações
características das relações entre a oferta e a procura; b) como elemento
integrado à infraestrutura do sistema de reprodução ampliada do capital,
necessita operar com eficácia e custos razoáveis, de modo a otimizar o processo
de produção e acumulação de riquezas ao qual se encontra conectado, c) enquanto
meio de subsistência, comunica seu custo ao valor da força de trabalho,
tornando desejável o seu rebaixamento ou manutenção nos níveis mais baixos
possíveis, de modo a manter em níveis igualmente baixos o valor da força de
trabalho. Trocando em miúdos, o preço da passagem de um meio de transporte
urbano deve, ao mesmo tempo, atender ao interesse dos empresários do setor de
transporte na realização máxima do lucro através da elevação da tarifa, além de
atender, também, os interesses de empresários de outros setores, uma vez que a
despesa com passagem, se levada em conta no cálculo do custo de vida, incidirá,
em tese, sobre os salários e preços dos serviços prestados pelos trabalhadores,
majorando-os, o que, inevitavelmente, repercute na fixação dos salários dos
trabalhadores. Esta contradição dilacerante, que coloca os interesses dos
empresários do setor de transportes em confronto potencial com os de seus
congêneres de outras áreas e com a massa dos trabalhadores, só pode ser
mitigada com intervenções pontuais do poder público, regulando o preço das
passagens e instituindo mecanismos compensadores (meia-passagem, bilhete único,
bilhetes de integração, etc.) ou solucionada, em definitivo, com a estatização
do sistema e a instituição do passe livre.
Considerada sob o aspecto social — com o alargamento sistemático do perímetro
dos grandes centros urbanos, sua conurbação em regiões metropolitanas também
geograficamente alargadas—, a opção realizada pelo estado e as classes
dirigentes brasileiras em prol do transporte rodoviário como instrumento, por
excelência, de deslocamento, considerando a inviabilidade econômica, ambiental
e infraestrutural de possibilitar que cada cidadão se desloque em seu próprio
veículo para os centros econômicos das principais metrópoles, situa a
problemática do transporte público no centro das preocupações sociais. Nesta
posição central, a disponibilidade, qualidade, alcance e custo da passagem das
linhas de ônibus, trens, bondes, barcas e metrô adquirem importância crescente
nas preocupações não apenas dos trabalhadores, mas dos mais amplos segmentos da
população, em particular das classes populares dos bairros periféricos, jovens
estudantes, trabalhadores informais e desempregados. Basta que as condições de
funcionamento do sistema de transportes, em qualquer dos aspectos referidos
acima, ultrapasse o limite do aceitável pela massa de “usuários" para que
uma onda de insatisfação se levante, podendo adquirir contornos de verdadeiras
revoltas populares como nos exemplos anteriormente apresentados neste texto. A
combinação da reincidência destes processos com o desgaste das fórmulas
econômicas e políticas da coalizão governante no Brasil; a pressão dos efeitos
da crise econômica global, que chega com mais força ao país e a descoberta, por
setores da juventude, de novas formas de mobilização e ativismo social através
do uso massivo das redes sociais conferiram aos movimentos de protesto que vem
se realizando no Brasil uma amplitude e uma duração inauditas, cujos
desdobramentos e resultados não se pode sequer projetar.
[1] Cf. JESUS, Ronaldo de. “A Revolta do
Vintém e a crise da monarquia”. História Social. N. 12, Campinas,
2006, pp 73-89.
[4] SAMPAIO, Consuelo Novais.
"Movimentos Sociais na Bahia de 1930: Condições de Vida do
Operariado". Universitas (29), jan./abr. 1992, pp 95-108.
[5] VAZQUEZ, Petilda Serva. Intervalo democrático e sindicalismo: Bahia – 1942/1947. Salvador, 1986,
FFCH/UFBA (Dissertação de Mestrado).
[6] DUARTE, Adriano Luiz. “O ‘dia de São
Bartolomeu’ e o ‘carnaval sem fim’: o quebra-quebra de ônibus e bondes na
cidade de São Paulo em agosto de 1947”. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 25, N. 50, p. 25-60 – 2005.
[10] Cf. HOBSBAWN, Eric. Rebeldes Primitivos. Estudos das formas arcaicas de movimentos sociais
nos séculos XIX e XX. Rio de janeiro: Zahar, 1978. RUDÉ, George. Ideologia e Protesto Popular. Rio de janeiro: Zahar, 1982.
THOMPSON, E.P. Tradición, revuelta y consciência de
classe. Estudios sobre la crisis de la sociedade pré-industrial. Barcelona:
Crítica, 1984.
[11] De acordo com a
informação de Adriano Duarte, os bondes, nesta época, transportavam 65% do
total de passageiros do sistema, cabendo aos ônibus o montante de 35%.
[12] ALMEIDA, M. C. V.
de. CIDADE, POLÍTICA E
MEMÓRIA. O QUEBRA-QUEBRA DAS
BARCAS EM NITERÓI. ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina,
2005.
[13] Cf GUIMARÃES,
Gabriel. QUEBRA-QUEBRA DOS ÔNIBUS NOS JORNAIS IMPRESSOS DE SALVADOR: A
polarização do jornalismo a partir da cobertura de manifestação popular durante
período de transição política. Disponível em: http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/7o-encontro-2009-1/QUEBRA-QUEBRA%20DOS%20ONIBUS%20NOS%20JORNAIS%20IMPRESSOS%20DE.pdf.
Acesso em: 25 out. 2013.
[15] Assis Charleston José
de Sousa. Grande imprensa e lutas sociais: os
jornais e os populares na revolta popularcarioca de 1987. Disponível em:http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276740123_ARQUIVO_Grandeimprensaelutassocias-Anpuh2010.pdf.
Acesso em: 20 out. 2013.
[16] Cf. FALCÓN, Natália;
RIZÉRIO, Joana e QUERINO, Rangel. Revolta do Buzu: semelhanças e diferenças de
dois movimentos que agitaram a cidade. Correio da Bahia, Edição de
31.07.2013.
[17] CF. BRITO, Rafael. Salvador: integrantes do Passe Livre
de Salvador divulgam carta com 21 reivindicações. Disponível em: http://www.grandesalvador.com/salvador-integrantes-do-passe-livre-de-salvador-divulgam-carta-com-21-reivindicacoes/.
Acesso em: 20 out. 2013.
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